segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Um senhor razoável

A cada dia estes textos estão mais ardilosos e enjoados, devem pensar os dois ou três parentes e os fidelíssimos poucos amigos que se dedicam à leitura dos rabiscos virtuais que publico. O primeiro período grafado hoje já traria uma arapuca a que maioria torceria o nariz. Piscava o cursor do editor de textos, no canto superior esquerdo de uma página em branco, e eu já estava a ponto de escrever “Um de meus finados avôs tinha razão”. Se o fizesse, não se trataria bem de má fé, nem de fixação pelo embuste linguístico. Também não seria erro de digitação, um acento circunflexo por um agudo, tampouco um machismo afetado, que me fez ignorar a existência ou o emprego da palavra “avós”. Explico melhor: “avô” é o pai do pai ou da mãe, e “avó”, a mãe da mãe ou do pai de qualquer indivíduo. Se nos referimos ao casal, quer sejam os genitores maternos quer sejam os paternos, dizemos “avós”. A generalidade da concordância na flexão do plural, em Português, segue a forma masculina; a noventa e nove alunas e um aluno chamamos alunos. “Avós” não foge à regra. A ilusão de anormalidade é-nos dada porque a palavra tem a vogal “o” aberta, o que lembra o feminino “avó”. Não passa da impressão. Estamos diante apenas de um caso em que se observa a metafonia, ou seja, modificação no timbre da vogal, fenômeno ocorrente, por exemplo, nos pares “novo”/“novos”, “poço”/“poços”, “osso”/“ossos” etc. Quando estamos a tratar somente dos dois pais, o pai do pai e o pai da mãe, usamos o plural de “avô”, “avôs”. Pois bem, dado o enorme problema que acarretaria meu primeiro período, não o escrevo. Ou melhor, substituo-o por outro.

Meu avô materno tinha razão. O senhor Joaquim, cujo sobrenome único era o que também trago mas, na maioria das vezes, não assino por não ser o último, era um homem das palavras, apaixonado apenas pelo seu som, pois que desconhecia totalmente sua representação gráfica. Não é o caso de aqui dizermos, pelo alívio do clichê, que só pôde aprender da escola da vida, já que não obteve ensino formal, nunca fora sequer alfabetizado. Basta dizer que sua relação com a linguagem era outra. Mascava-a feito fumo, apreciava seu gosto e, bastante pragmático, gostava de ruminá-la. Era afeito aos chistes, aos trocadilhos espirituosos e, às vezes, até às pulhas. Adorava deixar todos em maus lençóis com perguntas capciosas, frases em que residiam ambiguidades de todas as espécies, todavia, sua preferência era pelas troças de cunho sexual. Em tardes quentes de domingo, a família toda assentada à mesa, ansiosos pelo almoço, ele sempre dizia: “Nesse calor, até marinheiro, em terra, na bunda sua”. Os filhos faziam cara de reprovação, não achavam aquelas brincadeiras adequadas a um senhor de quase oitenta anos, minha avó ainda corava silenciosa mesmo que acostumada à convivência que já completara bodas de ouro, os netos iam ao delírio, os mais jovens talvez sem compreender por completo a polissemia do que dizia o velhinho.

Mas nem tudo eram anedotas, certas coisas lhe suscitavam indignação. Após um daqueles grandes almoços familiares, as crianças brincavam, correndo entre os pés das dezenas de árvores frutíferas do quintal, enquanto, reunidos em roda, em frente ao aparelho televisor preto-e-branco, sobre o qual possivelmente alguns leitores só ouviram dizer, ou conheceram em filmes de época, os adultos viam, no acinzentado telejornal, a transmissão de uma reportagem sobre o folclórico “jogo do bicho”. Vovô, com a respiração pesada, resmungava consigo mesmo, assistindo inconformado ao que era dito, com um semblante de desconforto crescente. Antes do fim da matéria, levantou-se de sua poltrona e caminhou em direção da varanda, de onde podia ver os netos. Não entendia por que as pessoas se aventuravam nos jogos de azar. “Ora, se é de azar, o resultado já está no nome”.

3 comentários:

  1. eu, como leitora fidelissima de seus textos, ja vou dizendo que em nenhum deles torci o nariz. rs muito pelo contrário, sao todos muito bons e é o que me levaa vir aqui todo os dias ver se tem um novo. =)

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  2. Certeza que o vovô perdeu várias...

    abr

    "CôntonNET"

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  3. Mestre supremo, como sempre ótimo texto. Parabéns, gostei mto do texto..

    abraço

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