terça-feira, 6 de outubro de 2009

Quase todos os nomes

Nomes de batismo surgem nas mais variadas ocasiões e, na maioria das vezes, seu advento não se dá sequer vislumbrando a santa pia batismal. Após meticulosas aquisições feitas em bancas de jornal, em livrarias e, ocasionalmente, na internet, para dar um matiz tecnológico ao assunto, certos casais passam horas e horas a queimar as pestanas, revirando de cabo a rabo revistas especializadas, que trazem milhares de antropônimos, todos acompanhados de sua etimologia, quase sempre duvidosa, diga-se de passagem, esperando achar um nome que venha a calhar a tudo aquilo que esperam do filho. Diz o futuro pai, este nome vai ficar ótimo num engenheiro ou administrador, a mãe quer um nome que seja adequado a um médico, ou a um advogado de congênitas aspirações a juiz. É de estranhar que não se ocupem com frequência de pensar em nomes de mendigo. Talvez a literatura não se tenha especializado tanto assim nalguns aspectos.

Outros pares, ainda namorados, tentam entrar num acordo sobre qual será o nome mais adequado à consumação e materialização humana de seu amor, mesmo que ainda não haja nem o embrião no útero que há de ser materno. Mais difícil será esta decisão que a dos casais do parágrafo anterior. Isso por um simples e claro motivo: pode ser menino ou menina. Listam-se os nomes preferíveis para cada gênero, sejam completamente diferentes, ou aqueles que têm a facilidade de aceitar a flexão feminina por acréscimo da desinência, facilitando uma troca rápida. Sobre uma conjectura, estabelecem-se outras, e continuamos, com altas doses de romantismo, a empilhar tijolos sobre a areia, para usar uma metáfora tão comum quanto o hábito.

Existem alguns casos em que a preocupação onomástica não urge tanto a um como a outra, exemplos há diversos, todos dignos de, aplicados algum esforço criativo e boa dose de bom-humor, transformarem-se em piadas, como o jocoso relato de uma amiga, cujo pai, quando do registro de seus três filhos, incluindo ela própria, foi ao cartório da cidade, ignorando completamente o que combinara em casa com a mãe das crianças. Os irmãos, um menino e uma menina, receberam nomes, escusado o trocadilho, literalmente compostos pelo ânimo neologista do pai, afeito a emendar retalhos de palavras. Minha amiga, por sorte de si e falta de criatividade paterna, ganhou nome que já ocorria com frequência em nosso idioma. O acaso fez com que fosse exatamente o mesmo de uma ex-namorada do genitor, o que não deve ter agradado em nada à esposa.

Feita a escolha, anos antes, ou nove meses depois da fecundação, mete-se o nome na plaqueta ou na pulseirinha afivelada à criança, ainda na maternidade. Não demorará muito para iniciar-se o infante no convívio da família. Aí vêm os tios, avós, madrinha, padrinho e primos com seus funestos hipocorísticos. “Hipocorístico” nada tem que ver com hipocondríaco. Trata-se, tão somente, da alteração quer por redução, ou atenuação, quer por redobro, ou sufixação, do nome pelo uso, geralmente afetivo. Francisco torna-se Chico, Antônio, Toninho, Joana, Naná, Sebastião, Tião, Maria Luísa, Malu etc. Segundo Jacopo, em seu testamento, o pai, originalmente, não tinha o famoso nome por que foi eternizado. Sincopou-se “Durante”, gerando a imortal alcunha “Dante” cujo patronímico era “Alighieri”.

Diversos processos de derivação ocorrem, concorrem, sobrepõem-se, arruinando o trabalho minucioso despendido, mesmo por aqueles precavidos pais que escolheram o nome do filho, já prevendo as modificações mais prováveis. Não são os únicos casos de modificação os hipocorísticos. Muito menos os mais perigosos, claro está. Há também, só para mais um exemplo, os epítetos. Sua prática data de tempos imemoriáveis. Da Antiguidade resgatamos, a quem quiser consultar, os epítetos homéricos. Era Aquiles “o melhor dos Aqueus”, “o filho de Tétis”. As características louváveis, ressaltadas, assim como os defeitos, até mais frequentemente, também o são. A proliferação dos epítetos, apodos, alcunhas e apelidos, de preferência com sua boa dose de maldade inocente, é inevitável. Quanto a isso, sem sombra de dúvidas, fazem os pais o que podem, registrado está em certidão.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Efeitos pelas causas

Só sabem das pressões a que se submete a corajosa imprensa os que dela fazem ou já fizeram parte. Pode-se até imaginar que se ofendam pessoas aqui e ali, visto que, como costumam dizer, “a verdade dói”. Também se pode imaginar que os ofendidos venham a efetivamente demonstrar seu descontentamento, afinal, ninguém ignora que a liberdade de expressão é, ou deveria ser, um bem de todos. No entanto, nunca nos passou pela cabeça, há dois dias, chegarem tão diversas e numerosas manifestações pela publicação de um breve relato da hedionda prática que estão a aplicar, nos mais desavisados e bondosos, os criminosos integrantes de quadrilhas internacionais.

Talvez a impessoalidade da rede de computadores propicie o anonimato às vezes desejado aos que se deliciam em proliferar o medo e ver surtos de pânico se alastrarem por todos os lugares. Somados aos realmente maus, estão os maus em teoria, aqueles que não sequestram, assaltam, mas se fingem de tal, passando trotes e informações equivocadas que visam à desorientação e o terror, quiçá, por isso, tornando-se tão verdadeiramente maus quanto os primeiros. Chegaram-nos dúzias de correios-eletrônicos mal-educados, que possivelmente se tratavam apenas de brincadeiras de péssimo gosto; bem os conheceu a lixeira virtual. Haveria de se ter mais medo ainda, evidentemente, tivéssemos denunciado, em vez dos estelionatários nigerianos, os mafiosos sicilianos, habituados a enviar peixes embrulhados em jornais como aviso do pior.

Mas nada foi tão preocupante como a entrega, pelo sistema de correio tradicional, de um envelope forrado de retângulos negros, semelhantes às notas mencionadas na postagem anterior. Caso o carteiro desconfiasse da encomenda que trazia em sua bolsa azul e, quebrando o valiosíssimo código de ética que faz do sistema postal nacional uma das mais confiáveis instituições de que dispomos, violasse a correspondência e extraviasse seu conteúdo, o texto teria trilhado, aqui neste terceiro parágrafo, outros caminhos, todavia, não fez diferente do que se esperava de um honrado servidor público. Na carta, liam-se, em língua inglesa – ajudou-nos na trabalhosa tradução um amigo versado no idioma bretão –, acompanhadas por um número de telefone de chamada internacional, as instruções a se seguirem se quiséssemos remover a tintura e tirar proveito da faustosa quantia que se dizia ser o valor nominal no interior do sobrescrito. Um oficial da polícia foi requisitado e, de pronto, tranquilizou a todos, prometendo cuidar daquilo que certamente seriam provas para uma investigação. Nada mais se soube.

Outro episódio, narrado aqui não pelo fato de ser aterrador, mas sim por sua peculiar comicidade, foi o da esposa do vigário, que insistiu com certa veemência, não querer ser confundida com a mulher do padre, que Deus a conserve. Dizia-se vítima do próprio conto do vigário, não confundir com o substantivo composto conto-do-vigário, e queria tornar pública sua triste e delicada situação. A pobre mulher fora passada para trás durante anos pelo marido que jamais como religioso se fez a ela conhecer, dada a evidente condição de celibatário. Não podia crer, comentava indignada, na traição que se lhe impôs: não se deitava o esposo com outras mulheres, nem era praticante de jogos, sequer bebia grandes doses de vinho. A amante oculta era uma alegoria espiritual, a saber, a noiva do cristo.


quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Fé de mais

A experiência acumulada por todas as ancestrais gerações e transmitida consuetudinalmente a nós nos diz que não devemos meter o nariz aonde não somos chamados, sob a pena de, consoante outro conhecido dito popular pertencente ao mesmo bojo do conhecimento humano, darmos a cara a tapas. Em conversa com um amigo, concluímos também não ser adequado, todas as vezes, chegarmos o nariz a lugares a que somos insistentemente convidados. Não falávamos de narizes e lugares, propriamente ditos, mas vá lá, não custava dar um matiz um pouco mais trivial a um assunto já tão prosaico.

Há gente que possui um coração de ouro. E os contos-do-vigário são uma fenomenal demonstração de que essas pessoas de narinas bem-dispostas só não têm a cavidade torácica pilhada, porque os astutos estelionatários logo percebem que o elemento químico só está ali presente em sentido é figurado, para dar brilho à expressão. A atividade em questão é tão antiga e conhecida que, apesar de suas infindas variações, não vale a pena, ou o teclado, descrever a original. Essa prática criminosa está tão imbricada à nossa cultura que, até em nosso idioma, se suspeita que o termo “vigarista”, segundo alguns estudiosos da língua, tenha surgido num destes imbróglios.

O primeiro ensejo do que aqui se escreve era meramente o da manutenção do gênero da crônica. Todavia, num esforço de trazer à luz importantes fatos ocorridos nos últimos tempos, usar-se-á, momentaneamente, um discurso mais próximo daquele que comumente se rotula jornalístico, que nos servirá melhor ao que se necessita relatar. Escusado será dizer que não temos o fundamental predicado de um bom jornalista: a competência ajustada à profissão. A formação também não a obtivemos, contudo – conforme preconiza a legislação vigente – não mais há a obrigatoriedade de possuí-la os que prestam este serviço. Contaremos aqui, pois, do antigo conto-do-vigário uma versão atualizada, como se nos exige a modernidade. Os mais puristas e conservadores que substituam SMS por telegrama, avião por navio etc., para que se evitem os desagradáveis diacronismos.

O golpe foi apelidado de “fraude nigeriana”, ou “fraude 419”, segundo o código penal daquele país. Milhares e milhares de mensagens eletrônicas são enviadas diuturnamente, ao redor mundo, até encontrar a pessoa predestinada a não ignorá-las. O variante conteúdo geralmente diz que um nigeriano, aparentado de um finado general, de um príncipe ou, até mesmo, familiar direto do próprio monarca, não obstante o país ser uma república presidencialista, precisa de auxílio para resolver os entraves jurídicos que o impedem de desbloquear uma suntuosa herança. O generoso herdeiro não vê problemas em partilhar o dinheiro com todo aquele que o ajudar. Li que um desses maravilhosos humanistas prometia ajudar instituições de caridade e casas de repouso, negando-se, portanto, se necessário, à sua própria fatia do espólio.

À vítima são pedidas, a cada contato, maiores expensas, indubitavelmente ressarcidas num momento oportuno, espera-se. Quando o enganado começa a achar-se realmente num engodo, vem-lhe a prova da autenticidade da transação: uma passagem com destino ao continente africano. Se passar por todos esses testes de bona fide, e desembarcar no aeroporto de Abuja, o bom estrangeiro encontrará o dito herdeiro, na companhia de uma mala cheia de dinheiro. A riqueza prometida está à pouquíssima distância, sente-se até o odor etéreo da riqueza. Só lhe há um último empecilho, o derradeiro impedimento: as cédulas de papel moeda foram cobertas com uma tintura especial, negra, para que se possa tranquilamente cruzar as fronteiras sem despertar atenções indesejadas. Qualquer um, numa situação tão adversa, se desesperaria, mas nosso esperançoso amigo ainda tem uma saída. O herdeiro nigeriano lhe oferece uma substância capaz de remover a tinta preta, demonstrando seu poder de limpeza em algumas notas, retiradas aleatoriamente da mala. Claro, após pagar uma módica quantia cobrada pela bisnaga do tal removedor, mais um milionário deixa o continente, mais pobre do que chegou.


segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Um senhor razoável

A cada dia estes textos estão mais ardilosos e enjoados, devem pensar os dois ou três parentes e os fidelíssimos poucos amigos que se dedicam à leitura dos rabiscos virtuais que publico. O primeiro período grafado hoje já traria uma arapuca a que maioria torceria o nariz. Piscava o cursor do editor de textos, no canto superior esquerdo de uma página em branco, e eu já estava a ponto de escrever “Um de meus finados avôs tinha razão”. Se o fizesse, não se trataria bem de má fé, nem de fixação pelo embuste linguístico. Também não seria erro de digitação, um acento circunflexo por um agudo, tampouco um machismo afetado, que me fez ignorar a existência ou o emprego da palavra “avós”. Explico melhor: “avô” é o pai do pai ou da mãe, e “avó”, a mãe da mãe ou do pai de qualquer indivíduo. Se nos referimos ao casal, quer sejam os genitores maternos quer sejam os paternos, dizemos “avós”. A generalidade da concordância na flexão do plural, em Português, segue a forma masculina; a noventa e nove alunas e um aluno chamamos alunos. “Avós” não foge à regra. A ilusão de anormalidade é-nos dada porque a palavra tem a vogal “o” aberta, o que lembra o feminino “avó”. Não passa da impressão. Estamos diante apenas de um caso em que se observa a metafonia, ou seja, modificação no timbre da vogal, fenômeno ocorrente, por exemplo, nos pares “novo”/“novos”, “poço”/“poços”, “osso”/“ossos” etc. Quando estamos a tratar somente dos dois pais, o pai do pai e o pai da mãe, usamos o plural de “avô”, “avôs”. Pois bem, dado o enorme problema que acarretaria meu primeiro período, não o escrevo. Ou melhor, substituo-o por outro.

Meu avô materno tinha razão. O senhor Joaquim, cujo sobrenome único era o que também trago mas, na maioria das vezes, não assino por não ser o último, era um homem das palavras, apaixonado apenas pelo seu som, pois que desconhecia totalmente sua representação gráfica. Não é o caso de aqui dizermos, pelo alívio do clichê, que só pôde aprender da escola da vida, já que não obteve ensino formal, nunca fora sequer alfabetizado. Basta dizer que sua relação com a linguagem era outra. Mascava-a feito fumo, apreciava seu gosto e, bastante pragmático, gostava de ruminá-la. Era afeito aos chistes, aos trocadilhos espirituosos e, às vezes, até às pulhas. Adorava deixar todos em maus lençóis com perguntas capciosas, frases em que residiam ambiguidades de todas as espécies, todavia, sua preferência era pelas troças de cunho sexual. Em tardes quentes de domingo, a família toda assentada à mesa, ansiosos pelo almoço, ele sempre dizia: “Nesse calor, até marinheiro, em terra, na bunda sua”. Os filhos faziam cara de reprovação, não achavam aquelas brincadeiras adequadas a um senhor de quase oitenta anos, minha avó ainda corava silenciosa mesmo que acostumada à convivência que já completara bodas de ouro, os netos iam ao delírio, os mais jovens talvez sem compreender por completo a polissemia do que dizia o velhinho.

Mas nem tudo eram anedotas, certas coisas lhe suscitavam indignação. Após um daqueles grandes almoços familiares, as crianças brincavam, correndo entre os pés das dezenas de árvores frutíferas do quintal, enquanto, reunidos em roda, em frente ao aparelho televisor preto-e-branco, sobre o qual possivelmente alguns leitores só ouviram dizer, ou conheceram em filmes de época, os adultos viam, no acinzentado telejornal, a transmissão de uma reportagem sobre o folclórico “jogo do bicho”. Vovô, com a respiração pesada, resmungava consigo mesmo, assistindo inconformado ao que era dito, com um semblante de desconforto crescente. Antes do fim da matéria, levantou-se de sua poltrona e caminhou em direção da varanda, de onde podia ver os netos. Não entendia por que as pessoas se aventuravam nos jogos de azar. “Ora, se é de azar, o resultado já está no nome”.

sábado, 26 de setembro de 2009

Sobre meninas e lobas

As feministas que me perdoem, mas metáfora é fundamental. As futebolísticas, então, sempre estiveram à mão dos homens brasileiros que somos. A prática não é coisa nova, afinal, Vinicius de Moraes já cantava A Regra Três.

Lembro que o grupo de amigos começamos por dizer que uma mulher era “zagueira”, quando não abria espaços para galanteios, outra era “armadora”, porque sempre articulava encontros para suas amigas. Uma das flexões verbais do período anterior tende a parecer estranha: trata-se de uma figura de linguagem chamada silepse, que consiste na concordância ideológica, neste caso entre o sujeito “o grupo de amigos” e o verbo “começamos”. O efeito pretendido é a leitura de que eu também participava desse grupo; encontramos a mesma figura no segundo período do primeiro parágrafo deste texto. Havia as “atacantes”, “goleadoras”, “artilheiras”, aquelas que sempre desequilibravam a partida e iam para cima do “adversário”. Não me lembro, entretanto, vez alguma – perdoem-me pelo esquecimento, se de fato o houve, os que compartilharam dessas acirradas discussões nos intervalos entre aulas e outros horários inusitados – de rotularmos uma mulher “gandula”. O próprio termo é de origem engraçada. Reza a lenda do esporte bretão que, nos anos trinta do século passado, um solícito argentino, cujo sobrenome era Gandulla, viera jogar num time brasileiro. Sem espaço na equipe titular, ele se ocupava de restituir ao jogo as bolas que se extraviavam do campo. Batizada estava a profissão daquele que em Portugal é conhecido como “apanha-bolas”.

Categorias, citávamos todas, das de base à profissional, divisões e campeonatos. Num encontro de bar, apareceram-me com a escalação de uma seleção inteira, titulares, banco e comissão técnica, bendito ócio! Na mesma noite, um amigo surgiu com uma teoria invulgar, não sei se lida algures, ouvida alhures. Nunca soubemos peremptoriamente quem fora o autor, mas transcrevo-a: “as mulheres de dezoito anos sempre terão dezoito anos”. Sorrimos e rimos todos, um pouco pela careta de entusiasmo que fazia o enunciador, talvez outro pouco pela cerveja. Algum tempo passado, um a um foi descobrindo e atribuindo seu próprio significado àquela máxima. Dizem que alguém conheceu uma mulher que, perto da meia-idade, ainda estava em seus dezoito anos...

Nunca fui muito afeito a trabalhos hercúleos. Por isso, nem nas quarenta linhas que este texto tem que somar no programa de computador que o edita, nem nas outras tantas páginas que eu venha a escrever vida afora, me proporia a definir, classificar, analisar ou dissecar, o objeto preferido em que se debruça quase toda a produção da cultura e do intelecto ocidental – de que, claro esteja, sei pouco. Também não incluo, na afirmação, o que se produz no oriente, por ignorância minha. Dizer que conseguiria a execução de tal síntese seria dizer-me capaz de confeccionar uma maquete do Éden, em escala um para um milhão. Tanto desconheço da topologia e da orografia do jardim quanto dos meandros da essência feminina. Deixo o preito aos poetas, fico com as anedotas.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Sexo forte

Não foi a baixa receptividade dos leitores que me obrigou a apelar para um assunto erótico, apesar de acreditar que o título contém palavras que, associadas, serão um chamariz efetivo àqueles que até então não haviam atentado para a coluna. Vamos ao caso. Numa noite dessas, tive uma experiência “ginecocrática”. O antepositivo “gineco-” é um elemento grego de composição que significa “da mulher”, “relativo à mulher”, “feminino”, em adição à modificação do pospositivo “-cracia” que carrega a ideia de “força, poder, autoridade” e, por extensão, “governo”, como, por exemplo, em “democracia”, “democrático”. O termo é estranho, um pouco raro, mas calha bem na descrição do que aconteceu.

Saía de um curso intensivo que estava ministrando, no centro da cidade. Caminhei a passos rápidos pelas ruas adjacentes à escola, que, àquelas horas, já se tornavam ermas, vazias. Objetivava o ponto de ônibus que fica numa avenida mais movimentada, o que já dá certa impressão, geralmente falsa, de segurança. Subi no veículo que ia em direção ao terminal do distrito onde moro para lá fazer uma conexão até a minha casa. Desembarquei no terminal, chequei os horários das linhas que atendem à minha vizinhança e constatei: não havia nenhuma nos minutos próximos. Decidi então pegar um ônibus que passa por dentro da universidade e seguir a pé o pequeno trecho restante.

No interior do coletivo, encontrei algumas garotas fantasiadas para uma tradicional festa promovida por uma das faculdades da Universidade Estadual de Campinas. Após alguma espera, em meio a plumas, paetês, mulheres musculosas, chapéus de pirata, colares psicodélicos, espartilhos e calções de futebol, o motorista deu a partida no motor e começamos o itinerário. Metros após a saída do terminal, primeira parada. Entrou mais uma centena de mulheres também fantasiadas, gralhando e corvejando numa euforia etílica, carregando garrafas de catuaba e outros misteriosos afrodisíacos alcoólicos. Na verdade, não havia uma centena de mulheres exatamente, isso só foi uma hipérbole, figura de linguagem que consiste no exagero para representar grande quantidade.

Começaram as gargalhadas eufóricas, batuques, gritos de guerra, vozes de comando, falatórios. O número reduzido de homens que seguiam no veículo, incluindo os dois que estavam ainda em expediente de trabalho, motorista e cobrador, estavam afônicos, entre maravilhados e assustados, com aquelas doses altíssimas de feromônio e estrogênio. Decidissem aquelas fêmeas enfurecidas sequestar o veículo e nos levar como reféns, para sermos escravizados em alguma aldeia matriarcal longínqua, não teríamos escolha. Com muita esperança, alguns de nós desenvolveríamos a síndrome de Estocolmo e ficaríamos felizes com a condição de submissão completa e absoluta. Outros, descontentes com os trabalhos forçados, fariam eclodir rebeliões que logo seriam pronta e impiedosamente massacradas.

Aterrado pela perspectiva de cativeiro, esgueirei-me por trás das hordas inimigas e, com um sinal discreto ao motorista, que condescendente compreendeu minha agoniada intenção de descer do ônibus, lancei-me à liberdade.

domingo, 20 de setembro de 2009

Manual ou automático?


Um amigo meu, aproveitando a repentina última baixa nos preços das passagens aéreas, fez suas malas e embarcou para passar alguns dias em Buenos Aires. Voltou feliz, talvez por ter encontrado as mesmas coisas de que gosta por aqui, estádios de futebol, cerveja e mulheres. Como lá lhe faltavam os amigos para partilhar das aventuras, quis comprar algumas lembranças, ou, abusando do galicismo aportuguesado, suvenires. De volta, trouxe-me um isqueiro, todo metálico, com a figura de um casal, um homem de fraque preto abraçando pela cintura, e olhando nos olhos, uma mulher de vestido vermelho-sangue colado ao corpo, numa sensual pose de dança. Sobre suas cabeças está a inscrição “tango”, em tipos à moda dos anos vinte do século passado. Realmente um bonito presente. Entusiasmado, logo quis testar a chama do petrecho que, para o meu desânimo completo, só faiscava. Meu amigo suspeitava que era necessário algum combustível para alimentar o fogo. Pouco conhecedor que sou da Química e da Alquimia, concordei com ele. Resolveria aquilo na próxima vez em que fosse ao centro da cidade. Procuraria alguma tabacaria, loja de pesca ou similar, e lá compraria o tal fluido. Um parêntese gramatical: “fluido”, o substantivo, é grafado assim mesmo, sem acento, e é um dissílabo paroxítono (FLUIdo), que se costuma confundir com “fluído”, particípio do verbo “fluir”, palavra com três sílabas, também paroxítona, que apresenta um hiato (fluÍdo).

No mesmo dia, à noite, ligou-me meu pai, desesperado por não saber reconectar os cabos no aparelho de DVD, que, por algum motivo que até hoje desconheço, ele decidira desinstalar e mudara de ideia no meio do procedimento. Dei-lhe a explanação cromática, disse-lhe que era tudo autoexplicativo, não haveria de errar. (Não se espante, o vocábulo “ideia”, que parece estar manco, faltando-lhe alguma coisa, agora se escreve sem acento. Também vem sem hífen a palavra “autoexplicativo”, alterações do acordo ortográfico de 1990). Possivelmente o medo de que minha mãe chegasse do trabalho irritadiça, querendo ver algum filme, obscureceu seu entendimento e ele não conseguia fazer a relação correta entre fios e suas cores. Tentei de todas as maneiras, umas mais didáticas, outras menos, em vão. Pedi-lhe desculpas, pois não tinha mais tempo para falar, precisava voltar ao trabalho.

Por ter terminado o dia cansado, resolvi ir à prospecção do combustível apenas na manhã seguinte. Logo cedo, já me encontrava na loja especializada. Perguntei ao vendedor, colocando o isqueiro sobre o balcão, qual era o fluido adequado àquele modelo. O homem revirou um armarinho de madeira e voltou com dois frascos. Um de preço exorbitante, outro de valor moderado. Disse-me que o efeito seria o mesmo, o que me fez optar, obviamente, pelo mais barato. Restava ainda uma grande dúvida em minha mente, como inserir o líquido. O homem, por volta de seus 60 anos, olhou-me com certo desdém e disse, “Simples, é como abastecer uma lamparina”. Assumi vergonhosamente que nunca executara nenhum dos dois grandes feitos. Com algum ar de inconformismo, o vendedor separou o isqueiro em peças e me explicou como embeber a espécie de lã sintética que serve de reservatório com a quantidade certa de fluido. Eureca! Fez-se a luz bem ali na minha frente. Saí contente, com meu isqueiro no bolso. Caminhando, pela mesma calçada da loja, telefonei a meu pai, perguntando se ele ainda precisava de ajuda com o aparelho eletrônico.


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